terça-feira, 18 de abril de 2017

reforma da previdência: a questão das contribuições, parte ii

semana passada, inspirado pelo artigo do marcelo medeiros, eu tentei estimar o quanto a idade de contribuição de 25 anos proposta na reforma da previdência afetaria o acesso à aposentadoria. a principal conclusão era que 80% dos trabalhadores conseguiriam atingir essa condição sem grandes problemas; já os 20% mais pobres ficariam longe, mas também ficam longe nas regras atuais.

o marcelo, que recebeu muito bem o post, entrou em contato pra gente discutir alguns pontos que não estavam considerados, e o que seria possível fazer pra ter um intervalo de estimativas mais confiável. da conversa saíram as seguintes mudanças:
  • desemprego/inatividade: fazer agrupamentos e percentuais de contribuição por renda do trabalho pode até ser razoável, mas por definição exclui quem não está trabalhando. ou seja, assume pessoas que trabalham ininterruptamente por 50 anos; na verdade, queremos saber as condições de elegibilidade de pessoas que passam (ou pretenderiam passar) 50 anos no mercado de trabalho. para chegar nisso, precisaríamos fazer duas simulações, considerando: 1) população economicamente ativa (pea = empregados e desempregados), e 2) uma "pea ampliada", incluindo saídas temporárias do mercado (relevante para mulheres que saem do emprego para cuidar de recém-nascidos) e discouraged workers (importante para muito jovens e muito velhos). o primeiro é fácil de obter na pnad, já o segundo é um número bem mais incerto. o que combinamos foi utilizar para cada grupo a maior taxa de participação observada ao longo da vida: assim, se para um grupo de mulheres, a maior taxa de participação se dá aos 35 anos em 85%, eu considero 85% da população em todas as idades.
  • 2014: como 2015 é um ano muito atípico em termos de desemprego e participação, trocamos para 2014 o ano de referência da simulação.
  • escolaridade: uma consequência de incluir pessoas que não estão trabalhando é que impossibilita os agrupamentos por renda do trabalho (quem está desempregado tem, por definição, renda do trabalho zero). trocando por escolaridade, mantemos uma segmentação que tende a captar bem diferenças de renda e que permite identificar o status de participação por grupo.
  • quintis: para o marcelo, separar os 20% menos escolarizados dos próximos 20% parecia desnecessário, por não serem grupos tão distintos. assim, os agrupamentos são de 0-40, 40-80 e 80-100
  • sexo: uma pessoa que representasse a média da população teria um ovário e um testículo. piada tosca à parte, também vale ver em que medida existe diferença entre os sexos nessa simulação. cruzando com a pea / pea ampliada, isso gera 4 cenários.
podia jurar que parecia menos coisa na hora. sem mais delongas:





nessas simulações, o cenário muda bastante. considerando só a pea, os 60% com maior escolaridade continuam majoritariamente atendendo aos 25 anos. já nos 40% mais baixos, o acesso fica muito mais restrito. considerando a pea ampliada, o impacto da inserção irregular das mulheres no mercado de trabalho fica claro: mesmo no grupo de escolaridade média, apenas 54% teriam condições de se aposentar. para mim, a principal conclusão desses novos cenários é que uma mudança de 25 para 20 anos de contribuição teria um impacto inclusivo significativo sobre os grupos mais pobres (trocando a linha de corte nos gráficos dá pra ver isso bem). disso, resultam 2 questões: qual o custo relativo de comportar esse grupo na aposentadoria (vs. bpc, provavelmente), e existe alguma perspectiva de mudança na inserção das mulheres no mercado de trabalho? mas de novo isso fica pro to-do.

ps.: ainda tem muita coisa que poderia ser aprimorada, é claro. a estimativa de pea ampliada é bem acoxambrada, aposentadoria precoce pode afetar mais esses resultados, nível de escolaridade vai aumentar consistentemente etc. a ideia aqui não é tentar fazer uma previsão, mas esclarecer o que as condições propostas representam hoje em termos de acesso à aposentadoria. em 2050 a gente vê quão feio eu errei.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

expectativa de vida em são paulo: não, não temos uma little serra leoa

o mapa da desigualdade de são paulo, relatório publicado pela ong nossa são paulo, é uma compilação de dados e fatos da cidade que tenta mostrar as diferenças que os distritos apresentam entre si em vários aspectos sociais, habitacionais, econômicos ambientais etc. é um relatório muito bem feito, intuitivo e transparente, e explora bem a riqueza de dados disponível sobre a cidade.

contudo, um de seus indicadores tem sido usado de maneira errônea recentemente, sugerindo uma disparidade gigantesca nas condições de saúde da cidade. de artigo deste mês, por exemplo:
Em Cidade Tiradentes, a idade média ao morrer é de 53,85 anos, a mais baixa no Mapa da Desigualdade 2016, uma compilação de dados oficiais organizada pela ONG Rede Nossa São Paulo. Para efeito de comparação, nesse quesito, o lugar... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/04/04/como-e-viver-no-lugar-onde-se-morre-mais-cedo-na-media-em-sao-paulo.htm?cmpid=copiaecola
Em Cidade Tiradentes, a idade média ao morrer é de 53,85 anos, a mais baixa no Mapa da Desigualdade 2016, uma compilação de dados oficiais organizada pela ONG Rede Nossa São Paulo. Para efeito de comparação, nesse quesito, o lugar com média mais alta na capital é o bairro de Alto de Pinheiros (zona oeste, a 70 km do centro), onde a expectativa de vida chega a 79,67 anos de vida.
"Isso é o mesmo que dizer que Alto de Pinheiros tem índice semelhante ao de um país como a Noruega, enquanto Cidade Tiradentes tem situação parecida com a de Serra Leoa, na África", diz Américo Sampaio, gestor de projetos na entidade. "É um absurdo uma diferença de 25 anos dentro de uma mesma cidade, tem alguma coisa errada", afirma.
de fato, tem alguma coisa errada. o problema não está no artigo, mas na equivalência que américo (e outros: aqui, aqui e aqui) fazem entre dois indicadores distintos: a idade média ao morrer e a expectativa de vida.

a idade média ao morrer é exatamente o que parece: a média da idade registrada nos atestados de óbito. uma consequência disso é que o indicador depende muito de quem vive em cada bairro. um bairro com muitas pessoas jovens terá muitas mortes de jovens, enquanto um bairro com muitas pessoas idosas terá muitas mortes de idosos. e como é o perfil de cidade tiradentes e do alto de pinheiros? usando os dados da secretaria municipal de saúde, temos:
oras, alto de pinheiros, uma região mais gentrificada, tem habitantes muito mais idosos que cidade tiradentes, um bairro dormitório. fazendo uma comparação para todos os distritos:
temos então um problema: a idade média ao morrer não parece nos dar muita informação além da pirâmide etária do distrito, de modo que não serve para dizermos quais são as condições de mortalidade e saúde dos distritos. qual a alternativa?

no caso, podemos tentar calcular a própria expectativa de vida. conceitualmente, ela indica quantos anos em média um grupo de pessoas nascidas hoje viveria, caso corresse o risco de morte observado no ano em cada idade. esse risco é calculado como a quantidade de óbitos em uma faixa de idade dividido pela população total nessa idade. ou seja, ele é justamente a idade média de morte controlando-se a composição demográfica. replicando a metodologia do cálculo para os bairros, e comparando com a idade média de morte:
duas coisas se destacam dessa comparação:
  • embora as duas variáveis estejam relacionadas, olhar para a idade média ao morrer diria que o pior distrito de são paulo é anhanguera, que tem uma expectativa de vida em realidade bem alta (78.7 anos). já o brás não despontaria como um caso particularmente problemático, mas é o que tem a menor expectativa de vida da cidade (71.3 anos);
  • não, não temos uma "serra leoa" contra uma "noruega" na cidade; mantendo as comparações, temos no brás uma "bolívia" e em moema um "japão". ao todo, a variação de expectativa de vida na cidade é de 12 anos, menos da metade do que o relatório do nossa são paulo indica.
isso não quer dizer que não existam diferenças importantes entre os distritos em questões específicas sobre mortalidade, (infantil, mortes violentas etc.) mas sim que a variável do relatório não é a relevante para as discussões em que está sendo utilizada. sem esse esclarecimento, os dados só geram desinformação, o exato oposto do objetivo do relatório.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

reforma da previdência: a questão das contribuições

em artigo na folha, marcelo medeiros destacou um ponto pouco discutido na reforma da previdência: mais que a idade mínima, o aumento do tempo mínimo de 15 para 25 anos de contribuição deve ter um impacto significativo sobre a capacidade das pessoas mais pobres se aposentarem. como ainda não vi nenhuma análise sobre o assunto, tentei fazer algumas simulações com base na pesquisa nacional por amostragem de domicílios (pnad).

comecemos pela relação entre trabalho, renda e contribuição à previdência. considerando as pessoas que estavam trabalhando em 2015, e fazendo um corte em cinco quintis de renda condicionados na idade da pessoa, temos o seguinte perfil de contribuições:


no gráfico, cada linha representa uma faixa de renda (0-20 sendo os 20% mais pobres naquela idade, 20-40 os 20% seguintes e assim por diante). assim, vemos que para o grupo mais pobre a contribuição para a previdência cresce até os 27 anos para um máximo de 25%, e começa a cair vagarosamente a partir de então. já para todas as outras faixas de renda, aos 20 a ampla maioria já se encontra contribuindo e esse padrão continua pelo menos até os 50 anos.

com esses dados, podemos fazer uma simulação: sabendo as probabilidades de contribuição de cada grupo de acordo com sua idade, quantas pessoas desse grupo chegariam aos 65 anos com os 25 anos de contribuição? fazendo um monte carlo com as probabilidades, chegamos em:


considerando o mínimo de 25 anos de contribuição, o percentual de pessoas em cada grupo que teria condições de se aposentar aos 65 então seria:


ou seja, com exceção dos 20% mais pobres, os demais grupos parecem não ter dificuldade de se aposentar nas novas regras. contudo, existem três pontos não considerados na simulação que podem afetar esse cenário:
  • aposentadoria precoce: as probabilidades de contribuição podem estar superestimadas para as idades mais avançadas, pois as pessoas se aposentam pelas regras atuais em média aos 55 anos;
  • mobilidade: é um pouco fatalista, no mínimo, dizer que a pessoa que estava entre os 20% mais pobres aos 18 anos também estará nesse grupo aos 25, 30, 40... igualmente para os mais ricos, que não necessariamente estarão ao longo de suas vidas inteiras no topo.
  • formalização: assim como a expectativa de vida, uma deficiência dessa simulação é que ela considera os padrões de contribuição e formalização vigentes hoje. ora, se tivermos um aumento da formalização nos próximos anos e décadas, talvez os mais pobres tenham sim condições de se aposentar com os 25 anos de contribuição.
desses pontos, o primeiro não me incomoda muito. a aposentadoria (pedido de benefícios, não saída do mercado de trabalho) precoce é algo muito concentrado nas faixas mais ricas, que de todo em todo já apresentam plenas condições de atender a idade mínima. o segundo tem sua validade, na medida em que implica que as faixas se encontram mais próximas do que parece, porém é difícil pensar em premissas simples e válidas para incorporar na simulação. de todo modo, acredito que o impacto seria pequeno. o terceiro é mais interessante porque podemos olhar para o retrovisor para avaliar: como tivemos um aumento significativo na formalização do trabalho nas últimas décadas, é possível ver que impacto ela teve até o momento. a análise acima foi feita com a pnad de 2015. fazendo a mesma conta para 2001, temos:


é verdade que a formalização ajudou muito: o segundo quintil de renda passou de praticamente inteiro inelegível para o inverso, enquanto o grupo médio de hoje tem perfis de contribuição parecidos com os 20% mais ricos de 2001. contudo, o crescimento foi muito tímido no grupo mais pobre e, seguindo nesse ritmo, ainda levaria muito tempo para ele chegar aos 25 anos de contribuição. isso assumindo que o ritmo de formalização do emprego nos próximos anos seguisse o dos anteriores - algo que, mesmo com reformas trabalhistas em vista, parece pouco provável.

e qual conclusão tiramos disso? no artigo, marcelo se mostra favorável a um critério em que, caso o trabalhador chegasse aos 65 anos com 15 a 24 anos de contribuição, ele estaria elegível para uma aposentadoria no valor de um salário mínimo. se eu não comi bola nas contas acima, essa é uma solução em busca de um problema: as faixas intermediárias não teriam muito uso para o critério dado que conseguem contribuir por ao menos 25 anos, enquanto a faixa mais pobre estaria muito aquém mesmo desse critério - na verdade esse grupo mal conseguiria atender as regras atuais. assim, sobraria para eles a opção do benefício de prestação continuada (bpc). porém aqui tem o triple punch da reforma: (1) a idade mínima aumenta para 70 anos e o valor do beneficio é desatrelado do salário mínimo (2) em nível e (3) em variação. destes, o que mais me preocupa são os 70 anos como mínimo, dada a relação entre renda e expectativa de vida. mas isso é assunto pra um outro post.