sexta-feira, 8 de junho de 2018

psi e caminhões: ceticismo sobre o ceticismo

nos últimos dias, tem acontecido mais um post-mortem dos governos lula/dilma e suas possíveis responsabilidade e peso sobre as crises atuais. especificamente, analistas têm apontado o financiamento de caminhões via programa de sustentação do investimento (psi) como um causador de excesso de oferta, que estaria por trás das dificuldades enfrentadas pelo setor e a greve/locaute recente. essa interpretação começou a ganhar peso com um texto do samuel pessôa na folha, e foi amplificada em entrevistas na tv pouco tempo depois. em resposta a essa visão, bráulio borges escreveu um artigo no ibre muito embasado para expor seus motivos para ceticismo com essa explicação. é desse último que quero tratar aqui, expondo os meus motivos para ceticismo com a explicação do bráulio, ou seja, um ceticismo-ception. (parte disso já discuti numa thread no twitter, aqui pretendo estruturar um pouco melhor a questão e usar dados mais adequados)

em particular, há dois pontos nos quais estranho as escolhas do bráulio, e um terceiro onde concedo que a evidência está mais a favor da visão dele, porém acredito ser incompleta. aos pontos:

escolha de períodos

ao longo do texto, bráulio varia muito o período de análise, olhando para demanda entre 2007-2014 como um todo em um momento, 2003-2011 em outro, o crescimento da frota no ano específico de 2011, e em geral usando 2012-2014 como o momento de incentivo do bndes. a justificativa para esse último intervalo seria a taxa de 2,5% implantada em setembro de 2012 para investimentos em caminhões pelo psi e pro-caminhoneiro como uma condição particularmente atrativa. contudo, o psi já era vigente desde 2009, e embora a taxa de 2,5% salte aos nossos olhos brasileiros, se medirmos o subsídio como uma diferença dos juros selic/bndes, por exemplo, a diferença não é tão grande entre o período pré-2012 e o pós-2012 . mais que as condições de financiamento, contudo, o volume de crédito concedido via bndes já vinha em níveis muito maiores que o usual. para tentar manter a consistência na análise, vou dividi-la em 3 períodos: pré-psi (2003-2008), psi (2009-2014) e crise/pós-psi (2015-2017). essa quebra aponta para a importância que teve o programa no desempenho do mercado de caminhões durante toda a sua vigência, e não apenas no final:


o impacto sobre o aumento da frota é visível também quando realizamos essas quebras:



indicador de demanda

o indicador de demanda proposto por bráulio considera o pib de agricultura, indústria (ex-extrativa), comércio. so far so good. é a exclusão do próprio pib de transportes e a inclusão de importações que me causam estranheza, em especial esse último. a princípio isso levaria a uma dupla contagem (as importações estarão refletidas em agricultura e indústria), porém imagino que a ideia seja construir um indicador de consumo intermediário, mais apropriado para estimar a demanda por transporte. contudo, vejo alguns problemas com isso:

1) a importação de serviços vem ganhando peso nas importações totais, invalidando parte dessa demanda crescente (eu não havia reparado, mas o indicador considera apenas a evolução da importação de bens);
2) não está claro que maior importação gere necessariamente maior demanda por transportes rodoviários, dado que a maior parte da importação de bens vem pelo modal marítimo e os grandes centros consumidores tipicamente se encontram também próximos ao litoral. isso é corroborado pelo anuário estatístico de transportes, que mostra o modal rodoviário como uma parte pequena (e caindo) do comércio exterior;
3) a justificativa para inclusão do indicador é o peso de importações no uso de transportes pela tabela de recursos e usos (tru), porém não consegui encontrar esse dado na tabela.

 se compararmos o pib, o índice proposto e o índice sem importações temos:





o indicador sem importações mostra um crescimento da demanda até menor do que o do pib no período do psi, e desempenho muito próximo antes e depois. também é interessante notar que mesmo o indicador proposto mostra crescimento maior frente ao pib apenas no período anterior ao psi.

para referência, segue a razão desses índices pela frota:
 




assim como acima, isso indicaria um excesso de oferta. isso deveria se refletir em menores preços, o que nos leva ao terceiro ponto.

preços e fretes

bráulio utiliza duas séries de preços para argumentar que os fretes não indicam excesso de oferta: o deflator do pib de transportes e um levantamento de fretes da aprosoja para transporte de granéis sólidos. confesso que não entendi o uso do primeiro. o pib de transportes não é recomendado para estimar a demanda do setor rodoviário, porém ele é adequado para estimar o preço médio do serviço? já o segundo tem um histórico muito pequeno para analisarmos o antes/depois, porém podemos comparar o desempenho do frete rodoviário com o ferroviário para ver se este modal teve um desempenho melhor que aquele. de fato, a diferença de comportamento é evidente:




isso também não é conclusivo, contudo, pois pode ser considerado uma evidência da substituição de modais no transporte. o volume transportado no modal ferroviário nesse período cresceu a um ritmo de 2,5% a.a., enquanto os indicadores de demanda estimados acima ficaram entre +0,4% e -1% a.a, indicando, de fato, uma possível migração. porém, essa é uma substituição modesta: é difícil acreditar que toda a diferença de crescimento de preços se deva apenas a ela, e não a uma menor capacidade de repasse dos fretes rodoviários devido a maior concorrência interna.

finalmente, considero a história de excesso de frota incompleta sem mencionar a política anterior de preços de combustíveis. isso porque a pressão de custos também seria um mecanismo importante para inibir a expansão da frota; porém, ao longo desse período o represamento dos preços de combustíveis praticado pelo governo impediu que esse fator impactasse as decisões de compra. com isso, o setor recebia subsídios tanto no capex quanto no opex:





numa nota final, o bráulio merece parabéns por elevar o nível do debate, buscando pautar a discussão em dados e evidências e chegando com isso a uma avaliação crítica da interpretação de excesso de oferta. espero que o exposto acima mostre, contudo, que essa interpretação tem mais solidez que as críticas dele apontam.

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adendo:

a ac pastore analisou a questão por mais uma ótica, um índice de rodagem de caminhões para tentar medir uma possível ociosidade no setor. o índice foi construído com o índice de fluxo pedagiado de veículos pesados medido pela abcr contra a frota de veículos da cnt/denatran. sobre isso, dois pontos:

1) o índice de veículos pesados inclui ônibus, o que pode distorcer a análise. contudo, a frota de ônibus representa cerca de um quinto da de caminhões, de modo que esse efeito deve ser pequeno. também não é claro para que direção teria puxado ao longo do período;
2) a estimativa de frota da denatran usada aparentemente não considera caminhão-trator. incluindo essa categoria, ou então usando a estimativa da sindipeças (em geral melhor por considerar depreciação), a queda no período 2009-2014 se acentua: