quarta-feira, 25 de julho de 2018

psi e caminhões 2: réplica à tréplica

o assunto já morreu há tempos, mas queria organizar aqui alguns contrapontos à tréplica de bráulio a samuel sobre a oferta de caminhões e a greve. como nesse último artigo ele enumerou vários bullets, vou colocar os pontos dele abaixo (em itálico) e complementar com os meus:

Em primeiro lugar, eu insisto naquele ponto que levantei em minha réplica: se de fato a situação atual fosse caracterizada por um excesso significativo e generalizado de caminhões operando na economia brasileira, porque as vendas de caminhões novos estariam crescendo 54% neste ano (jan-mai), gerando expansão líquida da frota desde meados de 2017 e sem nenhum tipo de estímulo específico por parte do governo? Em uma situação de excesso de oferta, eu esperaria um mercado de novos ainda fraco (com vendas abaixo da depreciação) e um mercado de seminovos/usados com mais giro (mercado esse que, vale notar, é bastante desenvolvido/líquido, transacionando 6 vezes mais veículos do que o mercado de novos, em média). Ou seja: o mecanismo de mercado, sem distorções/mudanças de regulamentação, deveria estar gerando um encolhimento da frota, caso tivéssemos de fato um excesso de oferta relevante hoje;
  • mencionar o crescimento das vendas este ano como um sinal de saúde do mercado é ignorar o contexto maior, no qual 2018 é o quarto pior primeiro semestre desde 2000. replicando a metodologia da sindipeças, temos a seguinte evolução de vendas, depreciação e frota:
    ou seja, com o crescimento anualizado da frota rondando o zero ainda, a dinâmica recente não parece muito mais que um dead cat bounce. esperar uma queda na frota também é complicado, considerando que os caminhões têm uma vida útil longa (em média 20 anos): para reduzir a frota em apenas 10%, seria necessário vendas zero por mais de 3 anos. nesse contexto, medidas melhores do excesso de oferta são ociosidade e idade média da frota (pois uma idade crescente acaba sendo um indicador de maior desejo de descarte). como mostrei anteriormente, o índice de rodagem já mostrava ociosidade, enquanto o cálculo de idade média aponta justamente uma reversão na tendência de renovação da frota:
  • sobre o mercado de usados, dois pontos a se destacar: i) como bráulio reconhece mais à frente, existe muita diferença entre caminhões de 5, 10 e 15 anos. isso se reflete inclusive na comercialização deles, como indicado pela fenabrave:

    ii) é interessante notar que ainda assim o ponto que bráulio esperava se confirma: as vendas de usados, em termos relativos, ganham importância no período mais recente. a compressão de vendas se deu nos novos, o que levou apenas recentemente o mercado à razão de 6 vendas de usados para cada novo:

    nesse contexto, o cenário mais provável é de alguns anos do mercado de novos apenas repondo a depreciação, ao menos até os financiamentos do psi serem liquidados (o que pode ir até 2024 em alguns casos) e os caminhões comercializados nessa época entrarem mais forte no mercado de usados.
No mais, acho importante apontar que a participação do Valor Adicionado gerado pelo setor (salários e lucros, grosso modo) no VA da economia como um todo aumentou continuamente entre 2007 e 2014, recuando apenas durante a fase mais aguda da recessão (2015/16), tendo se recuperado um pouco em 2017 (ainda mantendo um nível historicamente elevado). Agora, como esse “bolo” de VA do setor está sendo dividido entre empresas e caminhoneiros autônomos – algo que pode ser importante para compreender a paralisação recente – já é uma outra história, para a qual não há muita informação disponível possibilitando uma avaliação mais precisa;
  • primeiramente, é importante notar que esse aumento só se dá quando consideramos o pib nominal. quando consideramos o pib real, a relação fica praticamente estável ao longo do tempo:

    essa diferença gera algum ceticismo sobre o significado do aumento da participação no pib nominal, podendo ser simplesmente um aumento de custos acima da inflação média.
  • em segundo lugar, ainda que o bolo tenha crescido, é importante lembrar que entrou muito mais gente na festa. o pib do setor cresceu, porém ainda ficou muito aquém do crescimento da frota: 
Samuel aponta que os aumentos da frota de caminhões e do PIB teriam sido muito destoantes entre 2009 e 2017 (40% e 11%, pela ordem), sugerindo um crescimento exagerado da frota. Eu já havia calculado, no primeiro post desta sequência, um PIB mais relevante para a demanda por transporte de cargas do que o PIB total (no qual quase 70% correspondem a serviços), mostrando que aquele PIB mais específico (grosso modo, o PIB tradable brasileiro[1]) cresceu bem mais do que do PIB total até 2013 e caiu muito mais entre 2014 e 2016, voltando a crescer mais do que o PIB total em 2017 (figura abaixo);
  •  como apontei anteriormente, toda a dinâmica pró-cíclica do pib estimado por bráulio se deve ao desempenho de importações. pela própria lógica de uso de setores intensivos em transportes pela tabela de recursos e usos, a importação não deveria ser considerada, pois representa oferta de bens e serviços, não uso deles. simplesmente somar os componentes do pib remanescentes também não é a melhor solução, pois não é o peso do componente no pib que importa para a demanda de caminhões, mas o peso no uso de transportes. para efeitos de comparação:

    é importante notar também que, se considerarmos o indicador proposto por bráulio, e que a demanda era elevada nesse período, ele não pode argumentar mais à frente que a queda da rodagem média ao longo de todo o período (como mostrei no último post) poderia ser devida a falta de demanda, sob o risco de termos uma demanda de schrödinger.
O gráfico acima sugere que a elasticidade do PIB mais relevante para o setor de transportes com relação ao PIB total é maior do que 1 (foi de 1,2 em 2003-2017 e de 1,5 em 2003-2011). Levando isso em consideração, bem como o fato de que as expectativas consensuais do mercado (Focus/BC), entre 2011 e 2013, eram de um PIB total crescendo cerca de 3,5% a 4% a.a. em 2014-16 (contra uma variação efetiva de -2,2% a.a.), e temos um quadro que justificava, com ou sem subsídio creditício, a continuidade da expansão da frota de caminhões em ritmo superior ao do PIB total (como bem argumentaram alguns colegas do BNDES neste trabalho);
  • sou mais favorável ao argumento sobre as expectativas do pib, pois de fato isso representou uma frustração de demanda para praticamente todos os setores da economia. contudo, é justamente isso somado ao subsídio creditício que fez com que houvesse tamanha expansão da frota naquele momento, ao invés de deixar essa decisão para quando a demanda fosse de fato se apresentando. 
  • eu seria muito mais simpático ao estudo do bndes se eles não tivessem quibado o meu gráfico - até porque eles podiam ter pego o do blog, que usa variáveis mais adequadas.

- Por fim, eu vou cometer um autoplágio, ao repetir literalmente um trecho de meu post anterior sobre esse assunto:
“A avaliação dessa política específica no segmento de caminhões/ônibus não deveria levar em conta apenas os aspectos captados pelo PIB, mas também as externalidades positivas do ponto de vista ambiental e para a saúde humana (já que os veículos Euro V poluem até 70% menos do que aqueles que foram fabricados entre 2006 e 2011 no Brasil e ainda menos do que os veículos mais antigos). Ora: se por conta de uma poluição menor o bem-estar da sociedade aumenta, os gastos do governo com o SUS caem e a oferta potencial de horas trabalhadas cresce (já que as pessoas ficam menos doentes), isso também deveria constar da avaliação de custo-benefício. Mais uma vez, notem que não estou afirmando que, levando em conta essas externalidades, a política de 2012/13 teve retorno líquido positivo; só estou dizendo que isso precisa entrar nas contas.”
- Complementando esse meu argumento, a figura abaixo, extraída de relatório recente da OCDE, dá uma ideia quantitativa dos impactos macroeconômicos, nada desprezíveis, das mudanças climáticas/poluição. Não acho que a política de subsídios de 2012/14 (ou de 2009/14) tenha tido essas preocupações explícitas em termos ex-ante; contudo, na prática, pode ter gerado esses efeitos benéficos em termos ex-post e isso precisa ser levado em conta na avaliação de custo-benefício da política;
  • eu acho essa argumentação beside the point, dado que a discussão era se o excesso de oferta seria um fator importante na explicação para a greve dos caminhoneiros. mas indo por essa linha, vale lembrar que os caminhões poluentes de 2009 a 2011 (440 mil, contra 430 mil de 2012 a 2014) foram também subsidiados pelo psi, de modo que o excesso de vendas desse período também deveria contar como um negativo na conta ambiental. em realidade, até mais, pois além das vendas do período houve o acúmulo de estoques desovado no período pós-proconve:

    finalmente, também deveria entrar na conta o represamento do preço dos combustíveis no período de 2011 a 2014. ao fazer isso, o governo não só incentivou o consumo dele como relaxou as restrições para compra de caminhões, o que, novamente, levou a um excesso de oferta neste mercado. bráulio não tem certeza se os benefícios de saúde e ambientais seriam suficientes para compensar os custos dessa política; eu não tenho certeza se houve benefício ambiental/de saúde líquido nessa história.