o gregório grisa é professor do ifrs, pesquisador especializado em educação e uma das contas mais interessantes no twitter sobre o tema. recentemente, ele postou uma thread em resposta a um comentário do ministro weintraub sobre o fortalecimento do ensino superior privado. nela, gregório destaca a trajetória recente do setor privado e elenca uma série de preocupações sobre a sua qualidade.
como a thread em questão expõe muitas das críticas ao ensino privado que eu estou acostumado a ouvir, havia pensado em postar uma thread em resposta, mas há tanta coisa a discutir que eu achei melhor fazer esse post. para facilitar a exposição, eu vou incluir tweets específicos da thread abaixo para em seguida expor meus comentários, críticas e objeções.
isso é verdade, porém é interessante notar o quão pouco isso se relaciona ao acesso ao ensino superior:Primeiramente, algumas características gerais do sistema de ensino superior brasileiro. Imensa maioria (75%) de nossas matrículas já são da rede privada, umas das maiores porcentagens do mundo. 2/n pic.twitter.com/KUcIiWPvht— Gregório Grisa (@grisagregorio) 7 de junho de 2019
(o tamanho das bolas representa o número de matrículas do país em questão)
para ficar na américa do sul: sim, temos a argentina com ~75% de matrículas na rede pública e 90% de taxa bruta de matrículas. também temos o chile e o peru, com percentuais de alunos no privado iguais ou maiores que o nosso e mais que o dobro de taxa bruta de matrículas. temos a colômbia no meio do caminho: 50% de matrículas na rede privada, 60% de taxa bruta. se qualquer coisa, os números parecem mostrar que, para países em desenvolvimento, rede privada e acesso ao ensino superior andam juntos. finalmente, para um exemplo de um país em que a rede pública tem protagonismo, e que se caracteriza como nós por ter renda média, desafios na educação básica e amplas desigualdades econômicas e raciais, basta olhar onde está a áfrica do sul no gráfico.
o grisa tem razão, existe uma certa nuance aqui: no ensino presencial as públicas cresceram num ritmo um pouco maior nos últimos anos, enquanto no ead a predominância foi das privadas.Falando do número de matrículas, quando se consideram os anos de 2007 e 2017, observa-se também um crescimento maior na rede particular, 59,4% contra 53,2% na rede pública. 4/n pic.twitter.com/2damblC4cJ— Gregório Grisa (@grisagregorio) 7 de junho de 2019
é preciso tomar um pouco de cuidado com essa análise, mas a princípio um ritmo de crescimento maior de concluintes do que de matriculados ou ingressantes indicaria uma tendência de melhora na retenção de alunos. é interessante perceber que esse foi o caso na rede privada, porém não na pública.
aqui a gente entra em uma discussão (bem longa e wonkish, já aviso) sobre o funcionamento dos indicadores de qualidade do mec. para fazer isso, vale ter esses três slides em mente:Esse cenário nos remete a questão, o que esperar? Tomando como base o Índice Geral de Cursos e o Conceito Preliminar de Cursos (INEP), a rede privada tem uma avaliação mediana em termos de instituições e cursos, mesmo com a exigência de regulação atual, em tese, mais rígida. 7/n pic.twitter.com/qVFOK1K4ca— Gregório Grisa (@grisagregorio) 7 de junho de 2019
em resumo, o igc é uma média dos cpc's dos cursos de uma ies. o cpc, por sua vez, é uma ponderação da nota dos alunos no enade, do quanto a ies agregou no aprendizado do aluno (indíce de diferença do desempenho observado e esperado, ou idd), a titulação e regime de trabalho do corpo docente e a avaliação dos alunos sobre a ies ao concluirem o curso. um ponto importante é que o cpc é sempre uma curva forçada de 1 a 5: todos os indicadores são padronizados para uma nota contínua de 0 a 5 (dentro de cada área de conhecimento), que é ponderada para gerar o cpc contínuo. em seguida, as notas são arredondadar para os conceitos que aparecem no gráfico do gregório. assim, um curso com nota 2,944 receberá um conceito 3, enquanto um curso com nota 2,946 receberá um conceito 4. por conta dessa arbitrariedade, eu evito usar o cpc faixa, que pode enviesar muito as análises. no caso, acho muito mais interessante mostrar a diferença entre rede pública e privada pelo cpc contínuo, o que permite que identifiquemos os componentes que geram essa diferença. considerando os resultados do cpc de 2017, temos:
o que deduzimos disso? primeiro, que metade da diferença do cpc não tem a ver com qualidade, mas sim com seleção. digo isso pois não há diferença entre o idd, que é medido como a diferença de desempenho dos alunos entre o enem e o enade. contudo, há uma diferença de 0.1 pontos na pontuação enade. essa diferença de desempenho das públicas, portanto, vem do enem, isso é, de antes do aluno entrar no ensino superior. isso, por sua vez, está relacionado à questão discutida infinitamente no twitter sobre a regressividade do ensino superior público no brasil: ou seja, quanto maior for sua renda, maior é a chance de você cursar uma universidade pública. como eu mesmo já destaquei, a figura vem mudando bastante mais recentemente, porém essa continua sendo uma realidade, e que enviesa o cpc em favor das públicas.
sobre o regime de trabalho, novamente vejo um indicador com uma boa intenção, mas que ignora aspectos importantes da realidade das ies privadas. primeiramente, o regime de horistas permite uma melhor eficiência e flexibilidade na oferta de cursos e disciplinas, o que é importante para atrair e reter alunos. com esse regime, também é mais fácil trazer profissionais de destaque de suas áreas de conhecimento, que assim podem manter seus compromissos profissionais atuais e lecionar na medida em que a carga horária de trabalho total os permite.
(como um último ponto, fiquei surpreso com a avaliação discente ser pior na rede pública do que na rede privada, em especial para a organização didático-pedagógica. imaginava que uma combinação de noções prévias de "faculdade pública é melhor" e sentimento de "deveria ser muito melhor pelo que estou pagando" fariam esse indicador jogar contra as privadas)
se já precisamos de muito contexto para entender o que o cpc realmente diz no caso geral públicas x privadas, existem complicações ainda maiores no ead. primeiramente, estamos falando de um público com mais idade e mais compromissos. a idade significa que a estudante do ead saiu há mais tempo do ensino médio, e possivelmente teve uma educação de menor qualidade à época. por outro lado, estamos falando de pessoas que em geral trabalham mais do que pessoas do ensino presencial, o que restringe o quanto elas podem se dedicar aos estudos. é viés de seleção on steroids.Os cursos de educação à distância ainda representam um desafio no que tange a garantia da qualidade, há poucas pesquisas sobre egressos e os dados do CPC indicam avaliações piores do que cursos presenciais. 8/n pic.twitter.com/eSSBSo89Kx— Gregório Grisa (@grisagregorio) 7 de junho de 2019
outra complicação é que fazendo as médias simples do presencial e do ead, estamos comparando grupos distintos. como não existia oferta ainda de cursos de arquitetura e de engenharia química no ead, por exemplo, todos as notas 4/5 desses cursos serão por definição do presencial (lembrem-se, o inep faz a curva forçada dentro de cada curso).
finalmente, o que complica muito a comparabilidade é que independente de quantos locais o ead seja ofertado, ele sempre conta como um curso. se um grupo oferta cursos de administração em 10 campi diferentes, cada um deles é avaliado individualmente. já se esse grupo credenciar uma de suas faculdades para o ead e incluir os demais campi como polos do ead, por mais que sejam 10 ofertas distintas, elas serão somadas e agrupadas em um único curso. some-se a isso o volume significativo de alunos em alguns cursos, e muitas vezes será impossível um curso ead ser significativamente melhor que a média pois ele É a média. de fato, o que vemos no gráfico do grisa não é tanto que o ead seja pior em geral, mas sim que ele é mais concentrado no conceito 3, ou seja, mediano.
tendo em vista esses pontos, a comparação que fiz abaixo é entre os cursos presenciais e ead comparáveis, dentro da rede privada, e ponderados pelo número de alunos participantes do enade:
surpreendentemente, o cpc do ead é até melhor quando realizamos a comparação mais precisa. contudo, toda essa diferença é fruto das diferenças de titulação - isso faz algum sentido, dado que no ead há uma boa diluição de custos, e há também a necessidade de "quebrar" a resistência de alunos com docentes de renome. é evidente também a questão do gap de formação inicial.
esse é um dos pontos que mais me incomodam. frente a um problema grave no país, que é o gap de formação dos professores da educação básica, gregório olha algo que está ajudando a solucionar isso (a adequação da formação via ead) e vê apenas um problema de qualidade com base em uma leitura incompleta dos indicadores. esse gap de formação deve estar mais concentrado em cidades mais pobres e afastadas dos grandes centros onde as universidades públicas estão concentradas - vale lembrar que pelo censo da educação superior de 2017 as ies públicas presenciais estão presentes em 806 da 5570 cidades brasileiras, com limitação de vagas e alta carga presencial. já o ead (público ou privado) está presente em 2235 cidades, e permite uma maior acessibilidade por local, por preço (muito menor que o do presencial) e por menor necessidade de encontros presenciais, ou seja, é um jeito mais efetivo de atacar a questão. são esses justamente os pontos mais frequentes apontados para cursar o ead, pelo questionário do enade de 2017:Caso adentramos para o campo específico da formação de professores, a oferta de licenciaturas EAD preocupa, já representa 42% de todas matrículas, puxadas pela rede privada. A qualidade dessa formação tem e terá impacto direto na qualidade educação básica. 9/n pic.twitter.com/okc3orBkRC— Gregório Grisa (@grisagregorio) 7 de junho de 2019
(vale notar também que a qualidade é apontada como razão principal para cursar aquela ies com a mesma frequência entre públicas e privadas no ensino presencial)
em suma, espero ter mostrado que a realidade do ensino superior privado no brasil é muito diferente do que a thread do gregório sugeria. seja por expansão e acesso, por retenção de alunos, ou por qualidade, o que os números mostram é que a rede tem desempenhos similares ou mesmo melhores que o ensino público, mesmo contando com menos recursos. vale lembrar também que muito do que parece ser a melhor qualidade do ensino superior é um viés de seleção por ela receber os melhores alunos, atraídos pela sua gratuidade.
assim, embora eu entenda as motivações por trás do raciocínio da thread, acho que é uma leitura muito nociva a que se faz da expansão do ensino superior privado, pois é ignorar o quanto ele está agregando àquelas pessoas que não tiveram as condições (educacionais, financeiras, psicológicas, de tempo etc.) suficientes para garantir acesso ao ensino público. pior, é considerar que quando esse acesso acontece, devemos considerar que é uma perda de qualidade para o país. é uma leitura às avessas.