recentemente, o marcos mendes divulgou um ppt com 20 mitos sobre a reforma da previdência. é um material muito bom, que expõe de maneira clara os problemas com muitos dos argumentos contra a reforma. mas, como eu gosto de implicar, resolvi escrever sobre o mito 19: "a reforma é baseada na comparação do Brasil com países ricos, que possuem outra realidade". embora eu concorde com a resposta que o marcos dá, ela teria muito mais força se no slide imediatamente anterior ele não tivesse usado os países da ocde para argumentar contra o diferencial de idade de aposentadoria por sexo (detalhe que eu não sabia: os países da união europeia são obrigados a ter idades iguais de aposentadoria entre homens e mulheres). a elaboração do argumento também é muito menos detalhada do que dos demais pontos, citando alguns casos pontuais ao invés de propor comparações com países num mesmo contexto. esse é um ponto que me incomodava há algum tempo, então resolvi juntar os dados dos países da américa do sul no "pensions at a glance" (estudo da própria ocde, veja bem) para fazer algumas análises:
idade mínima, expectativa de vida e sobrevida
argumento recorrente entre os críticos é que a idade mínima de 65 anos é demasiado rigorosa no brasil, pois nossa expectativa de vida é muito baixa, em ~75 anos, enquanto nos países ricos ela é muito mais alta. a resposta, as usual, é que temos de olhar a expectativa de vida aos 65 anos, pois (1) o primeiro número é muito afetado por mortalidade infantil e mortes precoces por violência, (2) é a partir desse ponto que os benefícios seriam pagos aí. nessa idade, a expectativa de vida se aproxima de 85 anos, de modo que as pessoas poderiam receber aposentadoria por 20 anos, o dobro do que parecia na primeira comparação.
agora, se esse argumento por si só já é válido, ele ganha mais força quando olhamos os países da américa latina:
oras, nesses países também temos problemas de mortalidade infantil e violência e, de fato, o brasil se encontra na média em termos de expectaiva de vida ao nascer. já quando olhamos a expectativa aos 65 anos, o brasil é o terceiro melhor país do continente, superando mesmo países mais ricos como argentina e uruguai. ou seja, mesmo entre países comparáveis nossa demografia é mais favorável. assim, seria de se esperar que nosso critério de acesso levasse isso em consideração, mas também não é o que acontece:
como não há ainda idade mínima no brasil, usei a idade média como referência. mesmo assim, o brasil destoa claramente dos demais.
gastos com previdência e razão de dependência
acho que já está meio batido o gráfico comparando gasto com previdência e razão de dependência, mas a comparação com américa do sul de novo rende frutos:
longe de ajudar o argumento contra, o gráfico de novo ressalta que o brasil gasta muito com previdência dada sua população idosa. importante: o gráfico está considerando só o rgps. se incluíssemos rpps a diferença seria bem mais dramática.
diferença de idade mínima entre sexos
aqui o ponto inicial do post e onde a comparação com similares de fato rende mais diferença:
(mesmo caveat pra brasil de antes: usei a idade média)
longe de ser uma exceção, metade dos países da américa do sul (e os mais populosos) hoje praticam diferença de idade mínima de aposentadoria entre os sexos. (não é a minha política preferida: dada a diferença de expectativa de vida mesmo aos 65 anos, e a maior informalidade das mulheres no mercado de trabalho, seria mais favorável a idade igual, porém com um tempo menor de contribuição para mulheres. naturalmente, um contra-argumento é que isso acabaria por desincentivar mulheres a contribuirem, reforçando o ciclo etc. outro dia eu abordo isso)
taxa de reposição
na defesa da reforma, outro ponto ressaltado é que a nossa taxa de reposição é maior que a média dos países da ocde. uma crítica a esse argumento é que, se assumimos que o aposentado requer uma renda x para subsistência que a previdência vai garantir, quanto menor for a renda média do país, mais próxima ela estará desse x e maior será a taxa de reposição. assim, países mais pobres terem uma taxa de reposição não é tanto um sinal de generosidade quanto sinal de que eles são, bem, pobres. logo, a nossa taxa de reposição vis-a-vis a de países europeus não diz muita coisa. voltando pra américa do sul:
conclusão
de todos os pontos levantados acima, o único que iria um pouco mais contra a reforma proposta era o diferencial entre os sexos, no qual já foram feitas concessões de qualquer modo. assim sendo, o que eu me pergunto é: porque o pessoal que defende a reforma não faz esse tipo de comparação, insistindo no ocdeísmo? me vêm duas explicativas: (1) o brasil passará por uma mudança demográfica drástica, de modo que é melhor avaliarmos nosso sistema com base em como seremos amanhã e não em como somos hoje e (2) efeito retórico.
a primeira não me convence de todo: o argumento é válido, mas se você quer destacar a importância da reforma, mostrar o quanto o brasil vai mudar é parte da história. a outra parte é mostrar o quanto ela seria necessária mesmo sem isso - se não tivéssemos uma bomba-relógio demográfica, ainda seria uma política regressiva ter regime de tempo de contribuição sem idade mínima, ou gastarmos tanto em previdência quando a pobreza é mais concentrada nas crianças. e os dados da américa latina ajudam a mostrar justamente isso.
a segunda também me convence apenas em partes: falar que gastamos mais que o japão em previdência certamente é impactante, mas no fundo isso muda o foco da discussão para países distantes, com uma realidade muito distinta do brasil, e aí gera resistência. faz parecer que a mudança está muito longe ainda, afinal, nós não somos o japão. agora, falar que a maior parte dos pontos da reforma da previdência já são realidade aqui do lado, que nossos hermanos já estão se mexendo pra reformar a deles também, deixa a coisa um pouco mais concreta.
o que eu acho mais provável: a insistência vêm de um quê de conveniência (afinal, os dados para países da ocde estão organizados, completos, enquanto pro resto tem que ficar olhando nos relatórios, pode estar desatualizado etc.) e de achar que as comparações que já existem são suficientes. se as pessoas não se convencem com isso, bem, é porque elas se recusam a ouvir argumentos contrários, elas são muito polarizadas, estamos no pós-verdade blablabla. isso pode até ser o problema mesmo, mas tem um quê de entreguismo. se alguém não se convence com um argumento seu, você (1) repete ele exatamente igual e, quando isso não funciona, acusa o outro lado de não querer entender ou (2) tenta trazer mais dados pra discussão que reforcem o seu argumento e abordem as críticas que te deram?
donde esse post. o ppt dos 20 mitos é um passo importante em trazer novos dados e consolidar os argumentos, mas em muitos aspectos o debate ainda está bem repetitivo.
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